Fazer questão hoje?
O presente texto é fruto do trabalho no cartel intitulado “O Outro no contemporâneo” e expõe alguns dos temas e questionamentos até o momento
Atendimentos nos quais os pacientes não elaboravam questões a serem investigadas e dificuldade para elaborar minha questão de cartel. Fiz questão de produzir a partir disso. O cartel se dedica ao contemporâneo, este, marcado pela grande quantidade de respostas de prontidão. Prontuários são encontrados com facilidade a partir de qualquer pergunta sobre si, online, minando espaços por onde a divisão subjetiva pode acontecer. Me chamou a atenção, sobretudo nos atendimentos de jovens adultos e adolescentes, uma queixa comum: a procrastinação. Inseri no título o significante “hoje”.
A procrastinação muitas vezes é reflexo da vociferação insaciável do supereu, o tédio não encontra lugar quando se é possível/deve-se fazer tanto com as próprias mãos: Vive – se prazeres sem o outro, investe-se porque não se conta com uma aposentadoria, vai – se a academia por temor de que não será cuidado quando com mais idade, o uso de criptomoedas sem lastro, ou o policial em desacordo com a lei que aplica a sua própria. Seriam passagens ao ato? Uma via direta do instante de ver ao momento de concluir?
Como apontado por Marcelo Veras¹, no tempo de compreender teríamos emergência do Outro, porém o século XXI está marcado por uma descrença radical na palavra do Outro – o Outro da religião, do governo, entre outros. Seja pela emergência no tempo de compreender, durante uma associação livre ou sua manifestação como organização social, como a parte que lhe cabe em determinado latifúndio, quero abordar o Outro em seu aspecto associativo. A descrença no Outro nos coloca em um movimento de pós-verdade, no qual o homem se faz com o uso da ciência e da tecnologia – Caso o espelho não reflita o que o filtro do celular mostra, uma cirurgia pode resolver. Outro exemplo: Caso o filho tire nota baixa, este pode ser trocado de escola, antes que veja o resultado de sua atividade. Em outras palavras, antes de consequências e responsabilidades de compor um ambiente escolar.
A clínica nos mostra, a partir de frases como “meus filhos podem ser o que quiserem, quem quiserem”, uma precariedade no que concerne ao desejo dos pais em relação aos filhos. Este desejo, tem seu lugar mesmo quando contrariado, repudiado. Ademais, nota-se a pulverização do nome do pai não só quanto a metáfora paterna, que não produz os mesmos efeitos de outrora, mas também na emergência de uma lei de ferro.
Miller aponta o surgimento dos “comitês de ética” ² , organizados a partir de modos de gozo em comum, possuem um enunciado coletivo, vetando a enunciação de cada um sob a ameaça de cancelamento. O comitê mobiliza o ódio, primordial, para que se receba uma função – se antes tínhamos o nome do pai, hoje temos um “nomear para”.
Encontramos a máxima “sou o que digo que sou” baseada na identificação, muitas vezes, de um traço. Grande diferença das questões que encontramos no campo do grande Outro: Que sou eu nisso? Homem ou mulher? Além das perguntas referentes à procriação e a morte3. Vale destacar que o traço como identificatório não precisa estar lastreado em um Outro.
Os gadgets prometem tamponar a castração – não se tem tédio, e sob a pena de Lacan sobre tal afeto, o tédio é quando se quer Outra coisa4. Certamente essa consideração se faz presente nas queixas de jovens com dificuldade ou desinteresse de relacionamento com pares, ao mesmo tempo que brinquedos sexuais ganham diversas relevâncias, seja para destituir um gozo de intimidade (e assim um gozo outorgado por um comitê de ética), seja pelo avanço tecnológico da realidade virtual e das emulações mecânicas.
Referências
² MILLER, Jacques-Alain; LAURENT, E. El otro que no existe y sus comités de ética..Argentina, Buenos-Aires: Paidós, 2005

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Dedicado a escuta e investigação analítica, trabalho na psicanálise de orientação lacaniana. Para abordar a angústia de cada um, seja com quais nomes se apresente, ofereço um espaço onde cada palavra é valorizada, sempre com a singularidade como horizonte.
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