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Dente canino e oralidade
O desenvolvimento pulsional em Freud e Lacan a partir do cinema de Yorgos Lanthimos

Artigo escrito no final de 2020, como trabalho de conclusão de ciclo no instituto de psicanálise lacaniana CLIN-a. A proposta foi de redigir um texto que abordasse um dos 4 conceitos fundamentais da psicanálise, como identificado por Lacan no seminário de 1964. Escolhi o conceito de “pulsão”, o qual abordo em referência ao filme Dente Canino, dirigido por Yorgos Lanthimos, mesmo diretor do filme Pobres Criaturas, que seria lançado em 2023.

Dente canino e oralidade - O desenvolvimento pulsional em Freud e Lacan a partir do cinema de Yorgos Lanthimos

Aborda-se o conceito psicanalitico fundamental pulsão, a partir do filme Dente Canino, de Yorgos Lanthimos, 2009. O bizarro filme retrata uma família composta por pai, mãe, duas filhas e um filho, morando em uma casa distante. Não é dito os nomes dos personagens, que vivem de um modo atípico: Os irmãos têm permissão para saírem da casa apenas ao cair de um dente canino na idade adulta. Nenhum jamais saiu da residência. O pai possui interesse notável por cães pela possibilidade de treinamento visando determinados comportamentos, o que parece expandir aos filhos. Para isso, controla o  léxico dos jovens, pune fisicamente e omite o que há  fora da casa. A segurança do trabalho do pai, Christina, visita a casa, e desencadeia eventos para os quais o termo psicanalítico de pulsão pode lançar algumas luzes.

A pulsão freudiana

Freud caracteriza os estímulos pulsionais como provenientes do próprio corpo do indivíduo. Atuando como força constante, são exigências de trabalho para o psíquico (1915). A exigência de repetição da satisfação se presentifica por uma sensação de tensão, e um estímulo é projetado em uma zona erógena específica (Freud, 1905). Tem-se como exemplo a pulsão oral: No início da vida a boca é usada para a alimentação, obtém-se um prazer além da satisfação da necessidade e com ele, uma marca, para a qual várias representações se prestam como possíveis objetos de satisfação. Outras áreas do corpo se tornarão zonas erógenas, e Freud (1905) destaca a primazia dos fatores acidentais sobre os disposicionais – Ao que o filme possibilita um bom vislumbre. Há autores que reproduzem um entendimento desenvolvimentista da letra freudiana acerca da sexualidade infantil, na qual a libido “amadureceria” migrando entre as zonas erógenas. Nas palavras de Lacan:

“Não há nenhuma relação de uma das pulsões parciais à seguinte. A passagem da pulsão oral para a anal não se produz por um processo de maturação, mas pela intervenção de algo que não é do campo da pulsão – pela intervenção, o reviramento da demanda do Outro.” 

(Lacan, 2008/1964 pg. 177)

Além do princípio do prazer

No filme, o pai demanda a genitalidade do filho ao levar Christina até a casa para relações sexuais. A cena mostra o jovem desconfortável, porém ele sabe o que o pai espera e assim o faz. A falta de compreensão do filho acerca do sexo – e do mundo – e até mesmo a dificuldade de imaginar uma motivação para o ato do pai, acarreta em uma cena de sexo mecânica, aparentemente sem pretexto e sem prazer. Acontece de forma “crua”, longa cena de estranheza e incômodo, é ausente de música e os personagens parecem desprovidos de quaisquer características pessoais ou desejos. Zizek (2006), pontua que uma relação sexual, para o propósito de uma satisfação, tem de ser envolta por algum grau de sentido, um contexto que aqui chamaremos de fantasia, que tem como função excluir o real – bizarro, estranho e desprovido de sentido – do ato sexual. Este seria o motivo pelo qual o cinema retrata o sexo geralmente envolto em grande composiçõe artistica, ou até mesmo o porquê filmes pornograficos prezarem por algum grau de roteiro. No filme Dente Canino, a fantasia é propositalmente precária, a fim de despertar o sentimento de estranheza, que torna a cena uma incômoda filmagem de fricção. 

O encontro com o real transpassa o princípio do prazer. É o choque, o encontro faltoso, o que há de mais inassimilável. Freud opõe o princípio da realidade ao princípio do prazer na medida em que a realidade é definida como dessexualizada (Lacan, 1964). Os espectadores de Dente Canino têm um choque parcial por meio do incômodo, que oscila durante o filme, gerando uma sensação que é caracterizada a partir de certo momento na obra freudiana, como infamiliar (1918).

Os caminhos acidentais da pulsão

O filho responde às demandas paternas também na oralidade, ao sentir dor na cena em que é castigado, sendo obrigado a fazer uso de um enxaguante bucal. Sensação dolorosa para o jovem, mas satisfatória pulsionalmente, possivelmente por corresponder ao que imagina que o outro (neste caso, o pai) esperaria. 

Em um dos encontros do irmão com Christina, ela pede sexo oral, entretanto o rapaz recusa. Christina vai até o quarto da irmã mais velha, faz novamente a proposta, e convence a jovem em troca de uma tiara fosforescente. Posteriormente, a irmã mais velha solicita lambidas para a mais nova, com a mesma tiara-recompensa. Nesta cena, a parte do corpo escolhida para receber a lambida é o ombro.  Mais tarde, a irmã mais nova começa a lamber e morder o corpo da mais velha, em diferentes pontos. Em Freud, temos a educação como responsável para erguer barreiras aos estímulos pulsionais, e estas se expressam em forma de vergonha, nojo, moral e etc. Chamamos este fenômeno de castração, a partir do qual a “linguagem começa a habitar aquele corpo” fazendo com que regras sociais e a cultura de modo geral, tenham efeito sobre a carne. A sexualidade destes personagens se assemelharia então à sexualidade infantil, no que se caracteriza como perversa e polimorfa (Freud, 1905)

As experiências orais das irmãs têm desdobramentos diferentes. A mais velha chantageia Christina para que lhe empreste dois filmes: Rocky Balboa e Tubarão. Ao ser exposta a um material tão diferente, com fragmentos do mundo além dos muros da casa, a irmã mais velha faz atuações ligadas aos filmes, sempre envolvendo elementos orais: A cena de luta onde Balboa cospe sangue após golpes e imita o tubarão ao “abocanhar” os irmãos (que nada compreendem).

A pulsão genital

Observa-se outras mudanças na mais velha. Lacan (1964) destaca que a pulsão genital não é articulada com as demais, uma vez que esta é submetida à circulação do complexo de édipo e às estruturas elementares e outras de parentesco. Não é segredo que o irmão tem encontros íntimos com Christina, enquanto qualquer contato íntimo entre as duas é feito às escondidas. Essa configuração toca a irmã, e acarreta em ataques ao irmão: Ela agarra um avião de brinquedo da mão do rapaz e o arremessa para fora da casa, em seguida dá uma facada. Os filhos acreditam que os aviões que sobrevoam a residência são brinquedos, que por vezes caem no jardim, sendo, via de regra, o filho mais merecedor a pegar o avião do chão. Este objeto fálico é sempre capturado pelo irmão, o único permitido a relacionar-se sexualmente com a vigia. 

Após os ataques, a mãe castiga a filha a tapas. Posteriormente, não vemos o ciúmes do irmão ou relações com Christina, mas um rearranjo pulsional: A cena em que ela é lambida pela irmã mais nova. Este momento do filme é bem diferente da cena de sexo do irmão, uma vez que o incômodo é de outra natureza. O real agora é amortecido pelo contexto e enredo enquanto o  bizarro vem do parentesco. Supõe-se que a sexualidade não é vivida como choque pela irmã mais nova devido ao investimento libidinal na irmã mais velha e a criação de uma fantasia, fazendo com que a experiência se desenrole de acordo com o princípio do prazer na medida em que é sexualizada.

As diferentes capturas da demanda do pai

Ao abordar a fantasia, Freud a vincula a sentimentos de prazer, majoritariamente relacionados a sensações masturbatórias (1919). A fantasia funciona então como uma máquina que articula o desexualizado ao princípio do prazer, com uma brincadeira (Miller, 1987). De fato, a cena é quase lúdica. Assim a irmã mais nova vive a oralidade ao lamber os demais, como na cena em que acorda o pai, solicitando para que este lhe empreste o arpão. De modo geral, atos caninos aparecem no filme como demandas do pai, seja pedindo lambidas para a esposa ou na cena do treinamento contra gatos. Assim, o filme é sucedido em retratar o modo como a pulsão, mesmo partindo do corpo, não é um elemento puramente biológico, mas desenvolvida por fatores acidentais os quais os personagens são expostos na forma de entendimentos parciais sobre a demanda de um Outro.

A irmã mais velha vive a oralidade de modo que a impulsiona para a queda do próprio dente canino (e a saída da casa), o que leva às cenas finais do filme: A personagem arranca o próprio dente aos murros, com um peso de academia e sorri. Se dentre os irmãos, temos o rapaz que sente desconforto com o enxaguante bucal, a irmã que arranca o dente aos murros e a mais nova que lambe os demais, estamos diante de diferentes capturas da demandas feitas pelo pai, no que se constitui a pulsão para além de uma visão desenvolvimentista da letra freudiana.

Referências

Freud, S. (2010). “Batem numa criança”: contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais. In P. C. Souza (Ed. e Trad.) Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 14) São Paulo: Companhia das Letras (Original publicado em 1919)

Freud, S. (2012). O infamiliar. São Paulo: Companhia das Letras (original publicado em 1918)

Freud, S. (2010). Pulsões e destinos da pulsão. In P. C. Souza (Ed. e Trad.)  Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12) São Paulo: Companhia das Letras (Original publicado em 1915).

Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In P. C. Souza (Ed. e Trad.) Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 6). São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1905

Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário original de 1964)

Miller, J-A. (1987) Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Artes médicas.

Zizek, S. (2010). Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar editor.  

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João Paulo Sampaio

Psicanalista e Pscicólogo

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Dedicado a escuta e investigação analítica, trabalho na psicanálise de orientação lacaniana. Para abordar a angústia de cada um, seja com quais nomes se apresente, ofereço um espaço onde cada palavra é valorizada, sempre com a singularidade como horizonte.

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