Inteligência artificial, Bob Esponja e Psicoterapia

Durante muito tempo na antropologia, os chamados “povos primitivos” eram considerados pessoas em um estágio anterior no desenvolvimento humano, um desses motivos, era o chamado “fator místico” – acreditar que dançando se pode fazer chover ou algum comportamento que hoje diríamos supersticioso. Com Freud, em 1913, na publicação de “Totem e Tabu”, o argumento do pensamento mágico como ferramenta para localizar um povo em uma suposta “escala civilizatória” cai por terra: Mesmo nas sociedades que eram consideradas “mais desenvolvidas”, seja culturalmente, tecnologicamente e economicamente, o pensamento mágico se encontra presente – você vai desvirar aquele chinelo ou quer que sua mãe morra?

O mais curioso não é quando o pensamento mágico aparece em uma neurose clara, como fechar a porta X vezes ou dar X número de descargas no vaso sanitário. O mais curioso é quando imbuídos um objeto, uma mercadoria, de propriedades que não são intrínsecas a ela, como se um iphone do último modelo fosse um item indispensável para frequentar determinado lugar, ou até mesmo quando, comprando um determinado perfume, o cheiro “me dá confiança”. Aqueles que trabalham com saúde mental com certeza se lembram dos pacientes que dizem que o remédio resolveu o problema na hora – sem saber que os efeitos vão começar somente, no mínimo, daqui duas semanas. Um placebo raramente é feito de trigo, na maioria das vezes é feito de propaganda.

O neurótico ri de uma cena de desenho animado, sem perceber que seu gesto de cara-ou-coroa não é muito diferente. Woody, do filme Toy Story, em várias cenas chacoalha uma esfera preta que lhe mostra uma mensagem sorteada, e o personagem toma as mais diversas decisões a partir disso. No desenho Bob Esponja há também o episódio no qual uma concha que, ao dar corda, diz uma mensagem. O brinquedo é tido como um oráculo. Estaríamos agindo como o Bob Esponja e a concha em relação às inteligências artificiais? E nesse caso, os psicólogos estariam fazendo o papel do Lula Molusco, ranzinza, que despreza o objeto que deu tantas respostas acertadas?

A principal diferença entre o Chat GPT e a concha, é que as mensagens do chatbot não são aleatórias.

De maneira rápida, como funciona uma inteligência artificial?

Ao fazer uma pergunta para um chatbot, você coloca um input. Cada termo da mensagem passa por uma tokenização, ou seja, é atribuído um valor numérico. Organizando em tokens, há o processo de embeddings, nos quais essas palavras são localizadas em um espaço multidimensional e encontramos a relações de aproximação e distanciamento entre as palavras do input (por exemplo, “rei” – “homem” + “mulher” ≈ “rainha”).

Localizado as palavras, há o núcleo do sistema, uma rede neuronal transformer, que cria mecanismos de atenção para analisar como uma palavra se relaciona com outra, por exemplo, na frase “o cachorro late para o carro”, o sistema liga cachorro e carro, fazendo fazendo com que a geração de resposta leve em consideração a frase inteira, localizando sujeito e predicado, adjetivos, etc. Caso contrário, conversar com o Chat GPT não seria tão diferente de conversar com o corretor do celular.

Para gerar a resposta, o sistema escolhe cada palavra sob influência da temperature, mecanismo que controla o que seria a “criatividade” da resposta, fazendo com que palavras mais prováveis gere respostas mais previsíveis e uma temperature alta gere respostas mais aleatórias, isto é, que selecione termos mais distantes da rede neuronal. Os dados são organizados em um texto de modo a fazer sentido, isso é, o pós processamento ajusta pontuação, remove repetições e fornece uma frase coesa, a partir do sistema de tokenização já descrito.

Esse sistema, complexo, leva em conta uma solução encontrada há muito tempo no desenvolvimento da tecnologia.

Respostas para as perguntas

Na década de 1990, durante o desenvolvimento dos sistemas de busca como Google e Yahoo!, os desenvolvedores tinham uma grande questão: Como treinar uma máquina para entregar as melhores respostas aos usuários? E a resposta foi inverter os termos da equação: Como fazer os usuários treinarem a máquina para melhores respostas? Essa torção permitiu um sistema que, de alguma forma, se retroalimenta e garante sempre o melhor endereço eletrônico a cada dia.

Uma torção parecida aconteceu no momento em que os chatbots, como conhecemos hoje, chegam ao mercado. Não bastaria o treinamento por meio dos inputs e respostas seguintes na conversa (como se as I.A.s não tivessem tudo o que criamos na internet como aprendizado possível) se torna necessário, para que as respostas da máquina se pareçam com as de um humano, que o que seja do humano se confunda ao funcionamento de uma máquina.

Inteligência artificial pensa?

Sujeito suposto saber é um termo lacaniano que diz respeito ao que acontece quando se procura um analista de carne e osso para começar uma psicanálise, e a palavra sujeito não é aqui sem motivo. Sujeito remete, no senso comum, a uma subjetividade, alguém que habita aquele corpo a quem nos referimos quando conversamos com alguma pessoa. Porém, a inversão moderna é a de que há um sujeito na tecnologia – o Chat GPT sabe, o Chat GPT gosta, o Chat GPT acha. 

Enquanto isso, um grande ramo da neurologia remonta a considerações do século XVIII nas quais a carne era vista como uma máquina, um desequilíbrio de substâncias ou um código que faria o fulaninho gostar de futebol. A história de vida do fulaninho não entra na equação. E o que há de subjetividade é deslocado, agora, para o sistema que seleciona palavras através de um algoritmo. O cômico da situação é que ambos, neurologia e informática se servem de vocabulário semelhante, porém cada vez mais a subjetividade é atrelada à máquina, porque se surge algo disruptivo em uma pessoa, se trata da temperature alta, por isso ele está usando essas palavras desconexas! Porém, o Chat GPT está mais falante hoje, parece mais animado!

É neste ponto que a concha do Bob Esponja se assemelha ao uso de um chatbot para fins terapêuticos. Não tem a ver com a qualidade da resposta obtida, ou o uso ser possível ou não. Tem a ver com a subjetividade que atribui-se ao objeto. Antes de condenar a máquina, parece mais interessante que seja feita a pergunta em um sentido inverso: Um terapeuta precisa de sua própria subjetividade para atender? Tenho um fio de pensamento para essa pergunta cuja resposta é óbvia à primeira vista, talvez faça um próximo texto.

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João Paulo Sampaio

Psicanalista e Pscicólogo

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Dedicado a escuta e investigação analítica, trabalho na psicanálise de orientação lacaniana. Para abordar a angústia de cada um, seja com quais nomes se apresente, ofereço um espaço onde cada palavra é valorizada, sempre com a singularidade como horizonte.

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